Carta a um menino

Carta de Subcomandante Marcos — EZLN

A Encruzilhada
5 min readMay 12, 2020
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06 de março de 1994 — “Miguel, sua mãe me entregou a carta com a foto na qual você está com o cachorro. Aproveito a viagem de volta da sua mãe para lhe escrever estas linhas apressadas, que talvez você ainda não compreenda. Porém, tenho a certeza de que um dia, como este em que estou escrevendo, você entenderá que é possível existirem homens e mulheres como nós, sem rosto e sem nome, que abandonam tudo, até mesmo a própria vida, para que outras crianças (como você e não como você) possam levantar-se todos os dias sem ter de calar e sem máscaras para enfrentar o mundo. Quando chegar esse dia, nós, os sem rosto e sem nome, finalmente poderemos repousar debaixo da terra… Bem mortos, claro, mas contentes. (…)

O dia já está morrendo entre os braços noturnos dos grilos e então tive a ideia de lhe escrever para lhe dizer algo que viesse desses ‘profissionais da violência’, como nos chamam tão amiúde.

É verdade, somos profissionais. Mas nossa profissão é a esperança. Um belo dia, decidimos virar soldados para que noutro dia os soldados não sejam mais necessários. Ou seja, escolhemos uma profissão suicida porque é uma profissão cujo objetivo é de desaparecer: soldados que não são soldados, porque um dia ninguém mais será soldado. Está claro, não é? E parece que estes soldados que não querem mais ser soldados — nós — têm alguma coisa que os livros e os discursos chamam de “patriotismo”. Porque isso que chamamos de pátria não é uma ideia que existe apenas nas cartas e nos livros, mas é um grande corpo de carne e osso, de dor e de sofrimento, de angústia, de esperança de que, um belo dia, tudo mude. E a pátria que queremos terá de nascer também dos nossos erros e dos nossos tropeços. Dos nossos corpos nus e despedaçados deverá surgir um mundo novo. Será que o veremos? É importante vê-lo? Acho que isso não é tão importante como saber que ele nascerá, e que, no longo e doloroso parto da história, nós contribuímos com alguma coisa ou com tudo: vida, corpo e alma. Além de rimarem, amor e dor são irmãos e caminham juntos. Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas para que os soldados não sejam mais necessários é preciso virar soldado e disparar uma certa quantidade de chumbo quente, escrevendo liberdade e justiça para todos, não para alguns, mas para todos, todos os mortos de ontem e de amanhã, os vivos de hoje e de sempre, por todos aqueles que chamamos de povo e pátria, os excluídos, os que nasceram para perder, os sem nome, os sem rosto.

É muito simples ser um soldado que quer que os soldados não existam mais; basta responder com firmeza ao pedacinho de esperança que os outros — aqueles que não têm nada, aqueles que terão tudo — depositam em cada um de nós. Por eles e por aqueles que partiram durante a caminhada, por esta ou aquela razão, todas elas injustas. Por eles devemos tentar mudar e melhorar um pouco cada dia, cada tarde, cada noite de chuva e grilos. Acumular ódio e amor com paciência. Cultivar a soberba árvore do ódio pelo opressor junto com o amor que combate e liberta. Cultivar a imponente árvore do amor que é vento que limpa e cura, não o amor pequeno e egoísta, mas o grande, o que melhora e faz crescer. Cultivar entre nós a árvore do ódio e do amor, a árvore do dever. E nesta tarefa colocar toda a vida, corpo e alma, coragem e esperança”.

No dia 1 de Janeiro de 1994, o mundo parou e o imperialismo norte-americano dobrou joelhos diante de indígenas e camponeses do Ejército Zapatista de Liberacíon Nacional. No mesmo dia em que entra em vigor o NAFTA — Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (em português), o EZLN inicia uma insurreição armada e declara guerra ao Estado Mexicano.

Em apenas um dia, tomam de assalto 7 cidades mexicanas. Em cada uma das sedes das cidades ocupadas, na sacada principal de cada prédio, é feito o pronunciamento da Primera Declaración de la Selva Lacandona ao povo mexicano — um documento que expressa os sentimentos de indignação e revolta e os motivos e causas da luta; através dessa carta eles denunciam as atrocidades de um governo deslegitimo, que entregou seu povo à miséria. Um governo que elegeu-se através de fraudes eleitorais e que transformou um direito constitucional de acesso à terras para trabalho (ejidos) em uma mera mercadoria para latifundiários, coronéis e empresários estado-unidenses. Um governo que deslegitima uma herança de lutas do povo mexicano e que abandou os povos indígenas à fome, ao analfabetismo, as frequentes epidemias, ao trabalho insalubre e a uma vida de dificuldades.

Com tudo, o enfrentamento com o Exército Federal mexicano foi cruel. O governo inicia seu processo de repressão, utilizando enfrentamento direto com suas tropas de infantaria, artilharia e até bombardeios aéreos contra os insurgentes. O combate é desumano, desonroso e cruel.

Diante disso, a sociedade civil organiza um grande protesto no dia 12 de Janeiro, na Cidade do México, exigindo um cessar-fogo unilateral, o reconhecimento do EZLN como força beligerante e uma saída política para o conflito. É então aberto um diálogo entre o governo mexicano e as delegações Zapatistas. Sobre o ocorrido, Subcomandante Marcos comenta:

Pensávamos que o povo teria nos ignorado ou teria se jogado na luta conosco. Mas ele não faz nem uma coisa e nem outra. Todas aquelas pessoas que são milhares, dezenas, centenas de milhares de pessoas, milhões talvez, não querem insurgir conosco e nem querem nos deixar combater. Mas não querem que nos aniquilem. Querem que dialoguemos. Isso perturba todas as nossas idéias pré-concebidas e redefine o Zapatismo”.

chicos zapatistas

É aqui que a EZLN constata necessário estabelecer um diálogo com a sociedade civil, usando uma linguagem que:

“Explique ao coração as idéias destinadas a cabeça”.

Entre as primeiras tentativas de trilhar este caminho está a carta a um menino, escrita em 06 de março de 1994. Nela, os Zapatistas explicam que as armas não são um fim em si mesmo, mas uma etapa necessária que eles próprios almejam ver superada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GENARRI, Emilio. EZLN: Passos de uma Rebeldia. [Arquivo PDF] Disponível em: <http://www.dsbh.org.br/site/docs/6.pdf>. Acesso em: 12 de Maio de 2020.

EZLN, Comandancia General del. Primera Declaración de la Selva Lacandona. Enlace Zapatista, 1994. Disponível em: <https://enlacezapatista.ezln.org.mx/1994/01/01/primera-declaracion-de-la-selva-lacandona/>. Acesso em: 12 de Maio de 2020.

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